Thursday, May 22, 2008

No Parque por A. Moreira

Andava sozinha, perdida nos pensamentos. O dia estava cinzento e a tarde húmida. Árvores, bancos, candeeiros brancos, folhas, pedras, pássaros, passava por tudo meramente a olhar de vez em quando. Estava habituada àquele caminho, àquele lugar, mas nunca tinha visto aquele sítio com olhos de ver. Só conseguia ver o chão de cimento, mais nada.

Foi a ver o chão que ela foi encontrada: sozinha, no parque, já ao final da tarde. Graças à luz amarela dos candeeiros brancos, aquela peça foi descoberta. Uma peça pintada com a parte de uma cara estranhamente real. Era opaca e de um material elegante como madeira, mas forte como aço. A pintura observada era a de um olho esquerdo do cinzento das nuvens daquele dia. Enquanto a pele era branca como os candeeiros do parque, as tiras de cabelo eram negras como as andorinhas que estavam pousadas nos arbustos mais próximos. A imagem era leve, mas a peça era extraordinariamente pesada para o seu tamanho e forma quadrangular. “O olho observa, parece estar vivo, mas não passa de uma imagem!”

Antes de recomeçar a andar com o objecto na mão, foi notória a presença de um papel na parte contrária à da imagem: “parece... parece um... papel autocolante?”. Depois de retirado, essa superfície manteve-se estranhamente com a mesma textura. De repente e antes de qualquer reacção ou pensamento possíveis, a peça saltou da palma da mão esquerda que a segurava para a cara! A peça colocou-se sobre o olho esquerdo como se esse fosse o seu derradeiro lugar e tivesse apenas estado uns dias fora. Em nojo e medo, existiram tentativas para retirar a peça, mas esta não saía por mais que puxasse... Tinha acontecido: a peça estava colada à cara! Ao tentar manter a calma e ao olhar pelo novo olho que tapava o olho esquerdo antigo, houve espanto.

Enquanto que pelo olho direito só se via o céu cinzento do fim de tarde e a luz amarela dos candeeiros brancos, pelo olho esquerdo o cenário era outro: céu azul de várias tonalidades, sendo possível ver estrelas no céu azul escuro e ainda o clarão do sol que se tinha posto há instantes no céu azul claro. A luz outrora amarela dos candeeiros, só mantinha essa cor se pensasse nela. Bastava pensar “roxo”, que a luz de todos os candeeiros que conseguia ver ficava roxa para logo a seguir pensar “laranja” e a luz ficar dessa cor. Até as árvores eram diferentes: pelo olho da direita, só tinham um tom de verde, escuro e monótono, enquanto que, pelo olho esquerdo, era impossível contar todos os tons de verdes e amarelos e castanhos existentes.

Ao continuar a andar foi possível encontrar outra peça no chão, desta vez com a imagem de um pescoço. Depois de retirado o papel autocolante, a peça tomou logo o seu lugar. A caminhada continuou e há outra peça e outra e mais outra ainda. Foram encontradas sete peças no total, incluindo o olho direito, que provocava o mesmo efeito que o esquerdo. A cara estava completa à excepção do nariz e da boca.

Mas as peças encontradas tinham manchas vermelhas e doentias espalhadas. Essas manchas eram visíveis nas pálpebras e bochechas e pareciam estar a alastrar. Começava a olhar com preocupação à volta, para o chão, para os bancos e até para os arbustos à procura da derradeira peça na esperança que isso travasse as manchas.

Depois de andar, correr, correr, andar, descansar e andar outra vez, já havia dado umas 3 voltas ao parque sem sucesso. Já estava quase a desistir quando a peça foi calcada. Tinha pisado a peça quando ainda há instantes tinha olhado para ali e só lá estava o vazio no chão de cimento. Aquela pele branca que quase não deixava distinguir o nariz, uma réstea do cabelo negro que já conhecia e a boca. A boca quase igualmente branca, mas com uma porção ainda mais preta que os cabelos a dividir os lábios.

Foi com ansiedade que aquele último papel foi retirado. A peça colou-se e o puzzle estava completo. As manchas desapareceram gradualmente e estava finalmente completa! Só respirava ar puro, só falava para dizer o que realmente precisava e via, finalmente conseguia ver! Já não olhava para o chão. Agora o caminho era feito a olhar para a frente, como sempre queria ter feito fazer, mas não conseguia... até ali.

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