É fim de tarde. O sol vai apagando lentamente no céu. Passeio pela cidade magnífica, neste fim de tarde comum. Sinto diferença. Olho em volto, nada fora do lugar. A vida corre o seu curso habitual, o rio segue o seu rumo normal. As mesmas esplanadas, os mesmos barcos no cais. Os mesmos aromas, as mesmas cores. Respiro fundo, a diferença operou-se em mim, sei-o. A metamorfose aconteceu. Não sei precisar o momento Mantenho o passo monótono. Aproximo-me de casa e entro. Deixo um rasto de roupas no caminho, como se pretendesse que alguém o seguisse e me encontrasse diferente. Mas isso não acontece, estou sozinha. Aproximo-me lentamente do espelho grande, no canto, ao lado da janela escancarada que dá para o mar. Despida do mundo e de mim observo-me, meticulosamente. Aceito-me, diferente, com a calma que nunca tive. Talvez tenha esquecido de colocar a máscara de manhã antes de sair para o mundo. Ou então, está entre as roupas desarrumadas no rasto que criei para ninguém seguir. Olho-me, com a calma muda que nunca tive. A imagem que o espelho me devolve é complexa, ininteligível, como se de um puzzle mal montado se tratasse. Fotografo-me mentalmente. No lugar da cabeça que sempre havia estado ali, acima dos ombros, um coração enorme. Espremido, doído, marcado. Um coração. No lugar das vísceras, mil borboletas coloridas e esvoaçantes. No lugar dos braços asas. Dos dedos, penas de escrever. No lugar onde tudo começa, uma concha muito branca, com uma pequena pérola brilhante a sobressair. Em vez de pernas, altos e robustos troncos de árvores. No lugar dos pés, aves de rapina, com garras afiadas. Da imagem que julgava real e que se esvaiu num momento perdido no tempo, só os cabelos muito longos e escuros se repetem.
Olho-me de repente. Aceito-me com a calma que nunca tive. Para mim faz sentido. Gosto de mim assim, com as prioridades ajustadas, sem a máscara que caiu.
Os que me conheciam a máscara incansável, tentaram concertar-me. Trouxeram entendidos de todos os recantos do mundo, que não compreendiam. Nunca se tinha visto nada assim. Sucederam-se por muito tempo. Vieram médicos, cientistas, especialistas nos fenómenos do além. Olhavam-me e avançavam para mim furtivamente. Teorizavam, tentavam concertar-me, colocar as peças no lugar. Todos os dias, mais e mais pessoas acorriam ao meu cubículo, cada vez mais pequeno aos meus olhos., na tentativa de ver mais uma vez aquele espectáculo que consideravam de horror, aquele espectáculo que era eu. A besta reflectida no espelho. A minha alma tinha já dificuldade em respirar ali. Fizeram-me acreditar que sou só cabeça tronco e membros. Que a imagem que o espelho reflectia era errada. Resignada, aceitei. Deixei de olhar o espelho estragado, magnífico. Envelheci. Definhei lentamente. Convenci-me da minha loucura.
E um dia, quando já nada o fazia prever, tu chegaste. Asas nos pés, coração no lugar da cabeça, borboletas no lugar de outras coisas sem importância. E tudo o resto, como em mim, aparentemente fora do lugar. Fingi, não deixei transparecer a alegria que me invadia. Com medo que a visão que me assolava fosse mais um sintoma da minha doença, do meu problema. Mas tu chegaste mesmo e de mansinho acariciaste o meu rosto envelhecido que desde logo senti suave. Soube que eras real e com este coração-cabeça amei-te. Não foram precisas palavras para que te amasse. Amei-te com a calma que nunca tive, com a euforia que nunca tive, com o amor que nunca tive.
Sorriste, viste-me e sorriste. Levaste-me na direcção do espelho e sussurraste-me uma canção ao coração. Uma melodia sem palavras. Uma melodia com sons, aromas, sabores, toques, imagens. Uma melodia de amor.
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