O vento agitava-lhe as pequenas madeixas de cabelo que desciam em frente à sua testa. O sol esquentava-lhe o cabelo negro. Do rádio do carro alguém gritava por entre guitarras que estava na auto-estrada para o inferno. As chamas do inferno erguiam-se nos estofos do carro que condiziam com a pintura vermelha do carro. O vazio da capota recolhida parecia espalhar-se por toda a zona envolvente fazendo com que a estrada se equilibrasse no vazio dourado. Pequenos cactos castanhos e carcaças de animais bravios davam pequenos pontos de referência que o carro ultrapassava com grande velocidade. Conseguia ver o seu próprio olhar pelo retrovisor empoleirado em dois dados peludos. O sorriso quente não se via mas sentia-o bem a esticar-se na cara. O seus dedos tamborilavam no negro do volante.
Os dedos tamborilavam no negro do velho volante. O edifício principal estendia-se por 4 andares que bloqueavam o sol a nascer. Poucos carros se aventuravam ainda no parque de estacionamento da Universidade. O som que se ouvia era o de uma qualquer drogada da pop a reclamar contra o mundo injusto. "Coitadinhas das meninas" era o pensamento que saía dos negros cabelos escondidos por um gorro não menos negro. Fazia frio. Só o carro ligado impedia os vidros de se embaciarem a cada respiração. Mas não impedia o ar. O rádio velho do carro velho dava agora as notícias das sete. "Bom dia" o tanas pensou ele. Imaginava-se na voz daquela jornalista sulista daqui a umas horas. Sorriu. Quis mesmo rir. Mas rapidamente o recolheu. Havia algo a fazer. Com o velho motor a fazer abanar o seu assento carregou no pequeno isqueiro ao lado do cinzeiro. Esperou pacientemente enquanto este aquecia e quando saltou não perdeu tempo a agarrá-lo e estendendo a mão cravou o ferro em brasa nas costas da mão direita.
A mão esquerda segurava o isqueiro rectangular que largava um aroma de gasolina enquanto ia dançando uma chama no seu interior. Acendeu o cigarro e fechou o isqueiro contra a perna. Tinha-se encostado à berma para dar folga ao motor já demasiado quente e para encher os pulmões de fumo já demasiado vazios. Encostou o cigarro ao canto da boca e de uma caixa negra rectangular tirou uma guitarra igualmente negra que fez sentar no seu colo. Enquanto o cigarro lhe limpava os pulmões ele limpava a alma com uma canção num inglês imperceptível em que a palavra morte era uma constante. Ficou a dedilhar a guitarra enquanto o sol descia mais um pouco. O vento soprava satisfeito os cabelos negros dele que pareciam dançar ao som da música. Depois de refeito o peito guardou a guitarra de novo na caixa negra que cuidadosamente deitou no banco.
Tirou do banco cuidadosamente a caixa de guitarra. Tinha que ter cuidado para não fazer barulho. "Ainda não". A mão direita latejava incessantemente. Ainda assim ele carregava a grande mala com a mesma mão. "A dor é nossa amiga, mantém-nos alerta." Subiu os dois lanços de escadas que o separavam da porta e entrou pela grande porta da universidade que começava agora a acordar com alguns estudantes a passearem livros e bocejos. Ele olhava fixamente um ponto imaginário que marcava o horizonte. Passou por um par de corredores vazios e entrou na casa de banho do terceiro. Pousou a enorme caixa no chão e abrindo-a tirou uma barra metálica que usou para travar a porta. Com esta travada procurou na mala uma lata branca e retirando-lhe a tampa dirigiu-se para a parede mais vazia. A sua cabeça ainda cantava uma música calma, que não o acalmava mas mantinha o seu pensamento mais limpo e objectivo. Três espelhos erguiam-se contra a parede. Chegou-se junto da janela e começou a espalhar a tinta vermelha contra a parede branca. Com um sorriso nos lábios a tinta começou a formar palavras no branco.
Com um sorriso nos lábios largava palavras contra o vidro transparente. Repetia as de um artista qualquer enquanto sorria com a música a espalhar-se nas veias onde levavam a calma. A tinta vermelha espalhava-se agora no céu de fim de tarde.
Erguia-se também vermelha contra o horizonte a torre de uma estação de serviço, chamando para ela os que passavam no deserto. Ele foi cantando a metade de milha que o separava da torre. Encostou para dar de beber e beber. Foi fazendo bombear uns quantos galões para o depósito enquanto procurava no bolso uma nota que pagasse as bebidas. Seria bom ver alguém. Não que ele fosse um animal social. De todo. Mas neste sítio, nesta viagem seria bom ver alguém. Fechou o tanque e com as botas a baterem no alcatrão endurecido, dirigiu-se à pequena casinha apinhada de autocolantes.
Autocolantes apinhavam-se na parte interior da caixa de guitarra agora esventrada no chão. Um sorriso espalhava-se num deles mas não na cara dele. Agora estava concentrado a encher os bolsos com o conteúdo da grande mala preta. A lata de tinta tinha-se escostado a um canto e a universidade começava agora a acordar fazendo ouvir a sua respiração ofegante. Depois de vazia a longa caixa entrou para um cubículo e trancou a porta. Saltou por cima desta deixando lá dentro a caixa. Tirou a barra que empurrava a porta e atirou-a para dentro do cubículo ocupado. Saiu da casa de banho. A universidade tinha acordado com o seu atarefado rugido a percorrer os corredores. Ele estava parado junto à porta branca que sozinha se fechava.
Fechou a porta ao entrar e voltou a ouvir o sinal sonoro que avisava o dono da sua presença. Segurava na mão direita, que ostentava cicatrizes circulares, o dinheiro e a carta de condução que lhe permitiriam comprar qualquer coisa para afogar o peito.
A mão direita que segurava uma arma semi-automática ostentava uma cicatrizes circulares. A mão esquerda segurava um objecto parecido mas erguia-se paralela ao chão. O rugido fora substituido pelos gritos. Feridas circulares ocupavam pessoas e paredes, um vidro não tinha aguentado e espalhava-se agora no chão.
Por trás do balcão um vidro partido recortava o céu vermelho. Ele batia impacientemente no tampo do balcão enquanto olhava uma garrafa na estante em frente. A impaciência alargava-se agora às pernas e começou a percorrer os corredores da pequena e velha loja de conveniência.
Parou de percorrer os corredores quando regressou à porta de onde tinha saído há quinze minutos atrás. O chão enchia-se de gente, sangue, cápsulas de balas e restos de madeira lascada.
O chão enchia-se de excrementos de rato e cascalho que o vento tinha empurrado. Farto de esperar agarrou na garrafa que queria e saiu fechando a porta atrás de si.
Abriu a porta do cubículo com um pontapé e entrou lá para dentro, largou as armas no chão e pegou na caixa de guitarra com a mão esquerda.
Atirou a garrafa no banco de trás junto à caixa negra. Ligou o carro e espalhou pó arrancando para a estrada. Anoitecia mas não ligou as luzes. Levou o indicador e o dedo grande à têmpora para amenizar a dor de cabeça que começava a disparar com o anoitecer.
Na mão direita segurava ainda um revólver. As luzes azuis lambiam o vidro encostado à parede. Encostou o cano à têmpora. As costas da mão ainda latejavam. Ele sorriu.
A lua erguia-se já branca iluminando a estrada. Ele cantava. Os olhos fechados. O cabelo a ondular. A noite. A viagem.
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