"Um dia pensei que queria ser livre. Depois de pensar, depois de pensar muito, durante muitos dias que queria ser livre, disse que queria ser livre. Disse que queria ser livre. Depois perguntei-me, qual seria o próximo passo. E respondi-me: “É ser livre, o próximo passo é ser livre. “ Para isso basta ser livre. Basta pensar que se quer ser livre, dizer-se que se quer ser livre, e ser-se livre. E então percebi. Estava preso à ideia de que queria ser livre. Estado preso na própria tentativa da liberdade. E então pensei, vou libertar-me da tentativa de ser livre. Depois de ter pensado nisso muito tempo, disse-o. Verbalizei-o. Ia libertar-me da tentativa de ser livre. E então percebi, estava preso à tentativa de me libertar de ser livre. E assim me vi engolido num ciclo infinito. Uma bola de neve que ia crescendo, à medida que as minhas ideias se iam transformando em palavras e de seguida em tentativas. Então, parei. Parei e deitei-me na relva verde, muito verde, do jardim. Fumei um cigarro. Via o fumo libertar-se de dentro de mim e formar desenhos no ar. Dispersar-se até ser nada. Fiquei ali até que o dia se pôs. E com o passar das horas fui desconstruindo a minha vida. Fazendo-a em pequenos fragmentos de história. O momento em que aquele rapaz ruivo, me empurrou no recreio da escola primária, e eu caí no chão. O meu joelho deitou tanto sangue que julguei que ia morrer. Depois veio a empregada da escola de quem já só lembro o bigode muito preto, pôs-me um penso sobre o corte que eu tinha imaginado fatal e salvou-me a vida. Pelo menos foi o que acreditei naquela manha de sol em que o arranhão do joelho me fez temer pela vida. Depois houve o dia em que a Manuela quis ser minha namorada e me mandou um bilhetinho de amor com uns quadradinhos para usar na resposta de sim ou não. A vida era simples. Eu disse que não e ela não chorou, nem me deu um estalo, nem quis vingança. No dia seguinte namorava com o ruivo que me empurrou no recreio e me fez temer pela vida e pelo arranhão no meu joelho. Mas não foi por vingança, foi por ser criança. A vida era simples. E depois o dia em que o avô me pôs aos ombros durante a vindima para eu ir comendo as uvas ainda na videira. Ainda sinto o sabor doce das uvas. E o cheiro a vindimas, e dos caixotes cheios de uvas. E a primeira namorada. A primeira desilusão. O primeiro emprego. A mulher. Os filhos. E é aqui que paro e penso: quero ser livre. Ouvi alguém dizer um dia que tudo tem solução. Mas quem o disse, não sabia possível que um homem de meia-idade, um homem responsável de meia-idade, parasse, pensasse, e dissesse que quer ser livre. No momento de ser livre hesita. Não sabe sê-lo. Hesito. Vejo o tempo passar. A amargura chegar. Abdiquei de muito. Hesito. Vejo o tempo passar. Duvido: Terá valido a pena? Quero ser livre. A mulher que grita o meu nome para o jantar e que me questiona a lucidez: “- Deitado na relva a fumar até ao cair da noite na tua idade? Já tinhas idade para ter juízo.” Mal sabe ela, que estou no limite. Os miúdos discutem. Três crianças, com vozinhas estridentes, irritantes, discutem. Já não se pode ouvi-las. Grito-lhes que se calem. As lágrimas, as birras. Não aguento mais. Hesito. Hesito. Duvido. “: - Terá valido a pena?.
Saio da mesa sem jantar, a mulher corre atrás, com voz de discussão. Voz que pede gritaria. Não lhe respondo. Ela segue-me, aumenta o tom de voz, não desiste. Ignoro-a. Não posso discutir agora, tenho medo de me descontrolar e ser o fim. Ela enfurece-se. Grita. As crianças assustam-se. Têm medo. Choram alto, gritam. A mulher grita. Dou voltas à casa, perdido. Sussurro entre dentes: “Pára!” e “Agora não…” e “Não aguento…”. Ela continua, cada vez mais fora de si. As crianças, a mulher…. Batem à porta. São os sogros, que além de sogros são vizinhos. Ouviram a gritaria, vêm em defesa da filha. Gritam. O Sogro quer confusão. A sogra grita mais alto do que a filha. Deve vir com a idade. Quando se casaram a mulher sussurrava e eu falava em tom seguro, alto e forte. Agora ela grita, eu sussurro. Hesito. Duvido. Quero ser livre. Dói-me a cabeça. Amanha o dia será melhor. Ponho os sogros na rua. “- Mal-educado!”; “- Insensível, os papás só querem o meu bem”. As crianças histéricas choram, gritam, saltam pela casa. Deito as crianças a custo. A uma delas tenho que recorrer à merecida mas difícil estalada. Dói-me mais a mim que a ela. A mulher murmura. Vai moendo baixinho. Vai alimentando aquele bicho que vai comendo tudo de bom que ainda existe. A mulher continua o murmúrio, o lamento pela noite fora. Hesito. Duvido. Quero ser livre. Hesito. Duvido. Quero ser livre. Hesito. Duvido. Quero ser livre. Escolhi assim. Quis casar, casei. Quis um filho, vieram três, paciência. Fui feliz. Valeram a pena. Mas quero ser livre. Não aguento mais. Na minha cabeça, o murmúrio, os gritinhos, os choramingais, os sogros, o patrão que é um abutre. Hesito. Duvido. Quero ser livre. Desço as escadas até à garagem. Pego na pistola escondida debaixo de um armário velho, por causa dos miúdos. Procuro as balas, escondidas noutro armário. Saio para o jardim. Deito-me na relva, vejo as estrelas. A lua cheia que enche a noite de luz. Preparo a arma lentamente. Acendo um cigarro. Fumo-o até ao fim. Acendo outro cigarro. Fuma-o até ao fim. Fumo cigarros atrás de cigarros. O maço inteiro. O dia começa a nascer. Levanta-se uma pomba solitária no alto. Pego na arma. O tiro é certeiro. A pomba fica esborrachada e cai no chão desfeita. Nunca gostei de pombas. Fumo um último cigarro, lento. Levanto-me e saio de casa para o mundo, com a roupa que tenho no corpo. Tomo café e compro jornal no café da esquina. Volto a casa e trago pão quente e croissants para o pequeno-almoço dos meninos. Hesito. Acedo. Submeto-me. Talvez um dia…"
Diana Martins
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Friday, March 21, 2008
Pensei, disse e... só! por Diana Martins
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